terça-feira, 14 de setembro de 2010

Conto - O dito por não dito - IV

Capítulo IV

O
nze meses se passaram e a coisa nem atava nem desatava.

O
presidente continuava a frequentar o café habitual e, olhando-se para ele, lia-se-lhe no rosto a expressão mais inocente do mundo. Os compinchas da política continuavam a poder contar com as benesses de quem está no poder: mais um murozito ali na casa do vereador X, mais uns saquitos de cimento e uns tijolos acolá para a moradia do vereador Y, um arranjozito no jardim do vereador Z e um empurrãozito no licenciamento para o doutor Fulano de Tal! Claro que os materiais e a mão-de-obra eram da autarquia, claro que um “jeito” na papelada é sempre rentável, portanto, desde que as gentes andem contentes e satisfeitas com festarolas, inaugurações e afins, desde que continuem com um comportamento social cristalizado e apático, e permaneçam naquela ignorância inerte que fecunda e fortalece as raízes do poder e da corrupção, que importa o que se faz na sombra?

R
einava, pois, naquela cidadezinha, a paz aparente e a passividade ilusória de uma comunidade tipicamente humana, com todo o egoísmo e interesses puramente pessoais que, a nível global, fazem com que a humanidade não saia do profundo marasmo básico e primitivo de uma civilização a anos-luz de saber o que é a verdadeira evolução. Sim, porque a sociedade, a civilização é o reflexo de cada um, o reflexo de cada acto individual, por mais oculto ou manifesto, por mais ínfimo ou grandioso que seja!

A
mulher de meia-idade, com aquela forma de ser activa, enérgica e directa que tão bem a caracterizava, e que, descobriu mais tarde, incomodava muita gente, permaneceu firme no propósito de concretizar o convite presidencial. Os artistas que ela representava mereciam que ela se esforçasse. Continuou portanto a insistir e, finalmente, vencendo-os pela exaustão – pensou ela – conseguiu reunir-se com os responsáveis por segunda vez. Como era de esperar, a reunião decorreu com aquela falta de entusiasmo, por parte dos ditos responsáveis, que delata uma profunda contrariedade. Ficou então acordado que muito em breve comunicariam o período de tempo em que seria possível realizar a exposição. Quando o fizeram, nem se dignaram contactar directamente a mulher de meia-idade. Simplesmente incumbiram uma funcionária, que nunca tinha estado envolvida no processo, de transmitir telefonicamente as datas.

-
Bom dia. Pede-me o doutor Cicrano – o tal “entendido” e aspirante a crítico de arte – para lhe dizer que pode escolher a data da exposição – dizia a funcionária, comunicando o período em que a sala de exposições estaria livre. E a data foi finalmente escolhida!

H
avia toda uma série de coisas a preparar, a organizar. A mulher de meia-idade, tendo bem uma noção do trabalho que seria necessário efectuar e no intuito de definir objectivamente o que seria de sua incumbência e o que seria da incumbência do respectivo pelouro, tratou de contactar o responsável pela exposição.

-
Boa tarde! Seria possível ligar-me com o doutor Cicrano?

-
Boa tarde. Só um momento.

-
Obrigada.

-
Estou – disse uma voz de mulher.

-
Sim, muito boa tarde. Seria possível falar com o doutor Cicrano?

-
E qual é o assunto?

-
É a exposição conjunta que vai efectuar-se dentro de duas semanas sensivelmente a convite do presidente.

-
Ah, sim, já sei. Pode falar comigo porque sou eu que vou tratar disso – disse a mulher, apresentando-se de seguida – sou a Isaura, a irmã do Cicrano.

F
oi inevitável que pela cabeça da mulher de meia-idade passasse, como um relâmpago, o slogan batido de “jobs for the boys” que obviamente inclui no conceito os chamados tachos para os familiares.

-
Muito gosto – disse a mulher de meia-idade. – Estou a ligar para definirmos com a maior exactidão possível o que é preciso fazer – continuou ela.

-
Não se preocupe. Agora é comigo. Preciso é que me mande a sinopse e o logótipo da exposição para eu começar a fazer o mailing

-
Ah, são vocês aí que fazem o mailing? Óptimo. E quanto aos convites?

-
Somos nós que os fazemos também.

-
O convite ao presidente também?

-
Sim, sim, nós tratamos de tudo – insistia ela.

-
E o Porto de honra? E a informação aos meios de comunicação social? – perguntava a mulher de meia-idade, tendo dificuldade em acreditar num serviço tão, digamos, amplo e expedito por parte da função pública.

-
Nós tratamos de tudo, – repetia a irmã do doutor Cicrano – somos profissionais, sabemos o que fazemos – garantia ela.

E
ntretanto, a mulher de meia-idade pensou que seria correcto também ela endereçar um convite ao presidente. Afinal tinha sido ele o impulsionador de tudo isto e ela tinha estado presente desde o início. Quase sem dar conta, veio-lhe no entanto à mente o silêncio do presidente em relação à sua última mensagem, aquela em que ela lhe comentava a falta de interesse e a deliberada passividade do pelouro da cultura. Sacudindo esse pensamento com veemência por não querer incorrer em maus juízos, precisamente ela que, até prova em contrário, acreditava piamente que todo o ser é bom por natureza, começou a redigir o convite ao presidente. “Estimado Sr. Presidente” – escrevia ela – “… a concretização do seu convite só estará totalmente ultimada quando… nos agraciar com a sua inestimável e imprescindível presença… “ – ia continuando ela – “ … com profunda gratidão…” – e lá enviou o convite.

O
s dias foram passando e o presidente nem tugia nem mugia em relação ao convite. A mulher de meia-idade, apesar de, por essa altura, ter já começado a somar dois mais dois, recusava-se determinantemente a aceitar que o que vinha pensando pudesse ter algum fundamento.

N
a véspera da inauguração da exposição, pegou no telefone e falou com a irmã do doutor Cicrano para se certificar de que tudo estaria em ordem para o dia seguinte. O facto de os convites lhe terem sido entregues apenas três dias antes da exposição não a tinha deixado muito tranquila quanto à capacidade de organização do pelouro.

E
falando de convites, muito curioso era o facto de neles constar, fazendo o convite, o nome do presidente e o do vereador do pelouro da cultura! O nome do presidente indiscutivelmente teria que constar nos convites oficiais, mas… o do vereador do pelouro da cultura? Se o fulano nem sequer foi mencionado ou apareceu em altura alguma deste processo que durou dois anos?! Mas pensando bem, isto apenas confirmava a regra. Aqueles que se julgam importantes e poderosos não fazem o trabalho sujo, apenas o planeiam e o sugerem com subtileza e requinte aos funcionários servis e interesseiros; e estes, sendo como autómatos acéfalos e portanto não pensantes, não sentem o cheiro da imundície quando lhe metem as mãos, porque, estupidamente, estão já inebriados pelo perfume do poder que julgam hão-de vir a ter um dia! E quando o trabalho está feito, quem colhe os louros, e apenas daquilo que lhes convém, são os que urdem as tramas e não os que chafurdaram na porcaria!

-
Queria apenas certificar-me de que está tudo em ordem para amanhã – disse ela à irmã do tal doutor.

-
Nós somos profissionais – dizia ela, com um tom de resoluta afirmação que decididamente não convencia. – Está tudo pronto.

-
E o mailing e tudo isso? – insistia a mulher de meia-idade.

-
Fique descansada. Está tudo tratado.

-
Bom, então muito obrigada. Espero ter o gosto de a conhecer amanhã na inauguração! – e despediu-se.


(
continua)

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