terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ouvir

Não nos ouvimos! E isto é um facto.
Habituámo-nos de tal maneira ao ruído exterior, prestamos-lhe tamanha atenção, que esquecemos totalmente o nosso ruído interno, o borbulhar do corpo, o bater do coração, os sussurros da alma.
Ouvimos o ruído externo. E ouvimo-lo muito atentamente. As vozes de aclamação, os gritos de protesto, as declarações políticas, as narrações, os relatos e as invenções dos meios de comunicação, a publicidade, etc., etc.
Ouvimos as opiniões dos outros, ouvimos as nossas próprias convicções, ouvimos o que nos interessa e o que não nos interessa, e produzimos mais ruído ainda ao contestar, ao defender, ao apologizar, aom julgar, ao acusar. Enfim, entregamo-nos voluntariamente ao ruído que nos aturde e nem sequer nos apercebemos que esse aturdimento nos ensurdece.
Não ouvimos o nosso pensamento, que sentindo-se livre porque não é ouvido nem controlado, cavalga desenfreado e enche o mundo de disparates, de maldades. Não o ouvimos quando ele segreda sensatezes e não o ouvimos quando explode em absurdos.
Não ouvimos o corpo. Não ouvimos o seu movimento de máquina perfeita nem os pequenos ruídos que o seu funcionamento gera. Nunca o ouvimos. Atafulhamo-lo de porcarias, alimentos impróprias, substâncias tóxicas. Violentamo-lo com a violência do abuso, dos ritmos excessivos que o levam à exaustão. E quando ele pede socorro, através da indisposição, da dor, da doença, mil razões são apontadas para o problema, mil soluções apresentadas para a cura, mas nenhuma dessas razões é a razão que verdadeiramente o apoquenta nem nenhuma das soluções é a adequada ao seu problema.
Não ouvimos o coração. Não prestamos atenção ao seu bater. E vemos ódio onde há amor, vingança onde há boa-vontade, tristeza onde há alegria. Porque não o ouvimos, não sabemos nem dar nem receber. Porque ignoramos o seu suave palpitar ou o seu furioso galope, passamos pela vida sem compaixão e em constantes enganos, que é afinal o caminho trilhado por aqueles que, não sendo surdos, não querem ouvir.
Não ouvimos a alma. Essa então, cuja voz é tão suave e murmurada ainda que de infinita firmeza e verdade, nunca é ouvida. A essa calámo-la até antes que fale. Chamamos-lhe “a voz da consciência” e zombamos dela. Achamos que não tem realidade, que é totalmente obsoleta, e se por vezes falámos nela, ou é para lançarmos uma boa gargalhado à custa de quem nela acredita, ou para brincarmos um pouco à poesia e ao romantismo onde achamos que, palavras como essa, encaixam na perfeição.
Não queremos ouvir a alma, nem quando ela dói. Nem quando ela, no seu quase silêncio, nos pede aos gritos que a ouçamos; que lhe demos mais crédito a ela do que aos milhentos iluminados espertos, eruditos cartesianos, teóricos cristalizados e interesseiros argutos que inundam as nossas vidas com um ruído ensurdecedor, impedindo-nos de a ouvir.
Se alguma vez, por uma fracção de segundo que fosse, conseguíssemos eliminar o ruído exterior e nos permitíssemos prestar atenção ao ruído leve e suave de nós próprios, a nossa vida, a partir desse momento, jamais seria a mesma.

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